quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Primeiro Dia


"O que o acordou foi o silêncio. Primeiro, o do despertador que não tocou à hora combinada todas as manhãs. Depois, o de outra respiração, que devia ouvir e não ouvia. Estendeu a mão para o quente do outro lado da cama e encontrou o frio. Apalpou e encontrou vazio. Então, sim, despertou completamente. Um prenúncio de tragédia desceu por ele abaixo, como um arrepio. O que acabara de se lembrar era que não acordara só por acaso ou por acidente: aquele era o primeiro dia, a primeira manhã da sua separação — o primeiro de quantos dias? — em que acordaria sempre sozinho, com metade da cama fria, metade do ar por respirar. Era Abril, sábado e chovia. Sentado na cama, lembrou-se das instruções que dera a si mesmo para aquela manhã: fazer peito forte à desgraça. Nada é inteiramente bom, mas nada é inteiramente mau - pensou. Posso ler à noite até me apetecer sem me mandarem apagar a luz, posso dormir atravessado na cama, posso-me livrar daquele rol de cobertores com o qual ela me esmagava, fizesse sol, chuva ou frio, porque as mulheres são mais friorentas que eu sei lá, posso usar a casa-de-banho todo o tempo que quiser, posso espalhar as roupas, os jornais e os papéis pelo quarto à vontade e até - oh, suprema liberdade — posso fumar à noite na cama. Levantou-se para se olhar ao espelho da casa-de-banho. Sorriu à sua própria imagem, ensaiou-a calma, tranquila, confiante. Imaginou mentalmente o texto que poderia redigir sobre si mesmo para a secção de anúncios pessoais do jornal: “Divorciado, 40 anos, bom aspecto, licenciado, rendimento médio-alto, casa própria e espaçosa, desportos, ar livre, terno e com sentido de humor”. Mulheres compatíveis? Deus do céu, dezenas delas! Sou um partidão — concluiu para o espelho.(...) Enquanto fazia, com um prazer insuspeitado, o seu primeiro pequeno-almoço de homem só, passou à fase seguinte do que chamara o “plano de sobrevivência”: desfolhar a agenda de telefones em busca de amigos igualmente sós com quem fazer “programas de homens” ou de antigas namoradas, que se tinham separado ultimamente ou outras que achava acessíveis mas que nunca tivera a coragem e a oportunidade de aproximar. A primeira desilusão foi com os amigos: de A a Z, realizou que só tinha dois amigos sem mulher e, para agravar as coisas, com nenhum deles lhe apetecia sair e entrar numa de “anda daí e mostra-me lá como é o mundo lá fora”. Quanto às mulheres que julgava sortables, sempre eram cinco, mas o resultado foi quase patético. Duas já não moravam naqueles telefones, outra tinha-se casado entretanto, e o marido estava ao lado a ouvir a conversa, o que o deixou completamente idiota a inventar pretextos absurdos para o telefonema. Do número da quarta atendeu uma criancinha e ele desligou e foi só na última da lista que finalmente teve sorte: sim, a Joana morava ali, era ela própria ao telefone. Não, não estava casada nem, pelo que, esforçadamente, percebeu, tinha namorado. Sim, ok, por que não irem jantar logo, para falar do projecto que ele tinha e onde ela poderia caber. “Ah, a tua mulher não vem? Separados? Não, não sabia. Recente? Pois, essas coisas são tão chatas, mas ainda bem que reages e tens projectos novos e tudo! Ok, às oito e meia vens-me buscar”. Ele teria desligado quase em êxtase, não fosse a frase final dela, à despedida, que o deixou verdadeiramente abalado. “Olha, vais-me achar uma grande diferença. A idade não perdoa a ninguém, não é?” Enfim, sempre era um date. O primeiro, certamente, de uma longa lista. O que interessa se for um flop — achas que ias encontrar uma mulher super logo ao virar da esquina? É preciso é entrar no circuito, pá, começar a sair, a ser visto, fazer com que as pessoas saibam que estás disponível. O resto vem por arrasto. Passeou-se pela casa, pensativo, fumando o primeiro cigarro do dia. De repente lembrou-se que ainda não tinha visto o quarto do filho. A cama e a escrivaninha tinham ido, assim como praticamente todos os brinquedos. Sobrava um boneco de peluche, três ou quatro carrinhos semi-partidos, uns legos e um quadro para fazer desenhos, com os respectivos marcadores, pousados, à espera de uma mão de criança. A mesa-de-cabeceira ficara e parecia absurda no meio do quarto, sem a cama nem os outros móveis, com um retrato dele e do filho numa praia do Algarve, sorrindo, abraçados um ao outro. Sem saber porquê, sentou-se no chão encostado à parede, muito devagar, a olhar para a fotografia. Duas grossas lágrimas escorregaram-lhe pela cara abaixo e caíram na madeira do chão, entre as pernas. Foi só então que ele percebeu que estava a chorar..."
Miguel Sousa Tavares
Não te Deixarei Morrer, David Crockett

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Em tempo de estreias..


Em tempo de estreias, falo de um filme que estreou em 2004. ‘Crash’ é o nome do filme (Colisão, em Português). Uma dona de casa de Brentwood e o seu marido procurador de Justiça. Um persa dono de uma loja. Dois detectives que também são amantes. Um director de televisão afro-americano e a sua mulher. Um serralheiro mexicano. Dois ladrões de automóveis. Um polícia recruta. Um casal coreano de meia-idade: São estas as personagens do filme. Todos eles residem em Los Angeles e todos vão entrar em colisão, através de acontecimentos que, ao início, não parecem estar ligados mas que ao longo do desenrolar da história vão fazer todo o sentido para quem assiste. São verdadeiras histórias de puro racismo, xenofobia e intolerância que nos deixam capaz de dizer ‘ Mas como é que isto é possível?’. Porém, ao longo do filme vamos poder tirar ensinamentos e lições destas mesmas pessoas racistas e intolerantes, que mudam completamente a sua maneira de ser/ver de acordo com situações que lhes acontecem no dia a dia enquanto exercem a sua profissão. Não há palavras para descrever este filme, só quem vê sabe a sensação e as emoções que se vivem ao longo da história. É incrivelmente fascinante e, para quem ainda não o viu, devia sinceramente ver. A parte que mais gostei foi a do serralheiro com a sua filha e a 'capa da protecção' (Imagem), quem vir percebe porquê.:) Em suma, este filme olha de forma provocadora para as complexidades da tolerância racial na América contemporânea. Vale mesmo a pena ver.

PS: Falando numa estreia, vale a pena ver ' O estranho caso de Benjamin Button.'. Sem dúvida uma grande história e um filme muito bem concebido, na minha opinião.


quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Sabor Azedo e Esperança


Dói-me a cabeça. Hoje foi mais um dia a estudar Psicologia da Educação ( Bandura, Vygostky, Bruner e afins). Vejo a fogueira arder na lareira, a gata a dormir em frente a ela. Paira um silêncio no ar, o meu pai está com febre e a minha mãe está a fazer-lhe companhia. Olho para as fotos que estão por aqui na sala (sim, aquelas fotos que toda a gente tem) e há um imenso vazio que me atinge. Vejo nelas o meu pai com uns 15 kg a mais (O cancro é a proliferação anormal de células. Células essas que existem neste momento no organismo dele e que o atingem de várias formas), permaneço meio triste, meio incrédula e escrevo sem perceber bem porquê. Simplesmente porque cada vez mais constato que a vida dá muitas voltas, que não somos todos imortais e que há pessoas que, por vezes, estamos destinados a ver partir mais cedo que o que esperávamos (como a esperança é a última a morrer, espero mesmo que não passem de meros enganos estas palavras). Lembro-me da incrível rispidez com que ao início respondia ‘ Se fosse a minha mãe eu estava pior.’. Não quero imaginar o que iria sentir o meu pai se me ouvisse dizer isto. Porém, não era mentira nenhuma, era o que sentia e como costumo dizer ‘só retribuímos aquilo que nos dão’ e sem dúvida que aquela resposta era, naquele momento, a minha única retribuição. Já lá vão quase seis meses. Seis meses de desespero, seis meses de incertezas, seis meses de altos e baixos, seis meses de ver uma pessoa alegre, viva e comunicativa tornar-se numa pessoa pensativa, isolada, triste. Quando li sobre o assunto e vi que muitas pessoas não passam do meio ano e depois do diagnóstico dos médicos pensei “Será que é hoje? Será que é amanhã? Será que um dia acordo e já não vais estar cá?”. A cada dia que passa custa mais sorrir e fingir que está tudo bem, a cada dia que passa me ligo mais a ele, a cada dia que passa dói um pouco mais olhar e ver como a vida pode ter um sabor azedo. As incertezas permanecem, mas enquanto não há novas notícias (boas ou más, virão) resta-nos ter esperança e lutar, lutar todos os dias. (E rezar para que as lágrimas por todos derramadas reguem a esperança de uma cura.)

Marta, 20 de Janeiro 2009

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Pobres como nós


"As manhas do estômago

P. é uma mulher bonita. Alta, esguia, de gestos delicados. As fotografias que tem em sua casa mostram um rosto mais cheio, uns olhos mais felizes. "Perdi dez quilos nos últimos oito meses", assume. "Não tinha o que comer." Tem 38 anos, um filho de 12,o 12º ano completo e nunca tinha trabalhado na vida. "O meu marido ganhava bastante dinheiro, era ele que tomava conta de mim. Eu geria a casa, a educação do miúdo, as compras. Vivíamos bem, não éramos ricos mas também não passávamos dificuldades.Mas um dia decidi separar-me do meu companheiro, a nossa relação era muito má. Fiquei com o meu filho e descobri as dívidas do meu marido. Não fiquei com mais nada." Tentou uma imensidade de empregos e só conseguiu arranjar um - como funcionária de limpeza no Hospital de São João. Salário: 430€, mensais. A casa onde vivia serviu para saldar créditos, conseguiu alugar um cubículo de paredes esfareladas e janelas partidas, sem casa de banho, por cem euros. O resto vai para o passe social, água, luz, gás e para a escola do filho. "Habituei-me, logo a seguir à separação a ir comendo pouco."
Se fazia sopa para o rapaz, não lhe tocava. Cozinhava um bife ou uma perna de frango para o miúdo, ao domingo. Para ela, um caldo de cebola ou o que o miúdo havia deixado de sobra no prato. "Depois comecei a comer dia sim, dia não, a ver se me habituava. Desmaiava muitas vezes, quando estava a trabalhar. E um dia perdi finalmente a vergonha. Entrei no refeitório de Rio Tinto e pedi comida." Desde então vai la todos os dias, recolher o almoço. Não come ali, não se quer misturar. E também porque, da refeição que lhe dão, ela consegue inventar três. Um almoço para ela, que o filho tem alimento na escola, e dois jantares à noitinha. Encostada à porta de casa, tentando ignorar o frio, P. pára de falar para desatar num pranto desgraçado. "Ontem comecei a comer o almoço e soube-me tão bem que me apeteceu comê-lo todo. Mas eu não podia, eu não posso. O que hei-de fazer á minha vida?" "

Este é um excerto de um artigo da revista Notícias Magazine, de 18 de Janeiro 2009. Esta é a história do nosso vizinho do lado.Esta é a situação que atinge todos: os da classe média, os que estão na geração em idade activa, os que têm mais aptidões académicas ou maiores expectativas de conforto. Os novos casos que surgem não estão nos escalões mais excluídos da sociedade. Já se contam por 300 mil os portugueses que não se conseguem alimentar. É uma notícia que incomoda, que parece que não existe. Porém é a nossa realidade, e parte do nosso dever ajudar quem pudermos, porque um dia podemos ser nós ou alguém que nos seja próximo. Como diriam na RFM, no fim do momento religioso: "Vale a pena pensar nisto."

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Despensa dos Sonhos


" Se tantas pessoas dão a entender que vivem sem sonhos, é porque talvez haja um lugar, dentro de nós, onde eles se guardam, sem que se dê por isso. Não sei onde fica, reconheço. E, às vezes, intriga-me que o seu caminho e o nosso pareçam desencontrados. Imagino-o como uma longa despensa, mais ou menos esconsa (e fresca),de luz acolhedora, mas sem o bulício de uma uma praça de gente atarefada, onde se atropela quem esbraceja, fervilhante, e quem, do alto de uma janela, espreita, sereno, a vida lá em baixo. Em todas as pessoas, por mais que não pareça, há uma despensa de sonhos. (...)
Suponho que, sempre que não podemos dizer, com simplicidade, "Abraça-me e não me perguntes porquê", há uma parte de nós que se esgueira para a despensa dos sonhos. E por lá fica, num "já não sei se sei sentir". É aí que, sem ser fácil de entender, uma tristeza nos revolve, devagarinho. Não tanto pela dor com que magoa, mas pela vida de que nos separa. Não sei se o grande privilégio dos sonhos será o de nos antecipar o futuro. Na verdade, imagino que eles sirvam para deixar que ele aconteça. (...)
O mais enigmático dos sonhos não passa por viverem guardados numa despensa. Mas por só descobrirmos que ele existe quando alguém, abraçando-nos sem perguntar porquê, os descobre e os solta. E dessa forma nos sossega, quando mostra que o grande privilégio dos sonhos não passa por antecipar o futuro mas para deixar que ele aconteça."

Eduardo Sá
em "Más maneiras de sermos bons pais."

domingo, 11 de janeiro de 2009

Coisas simples

Porque procurar constantemente dormir, é a única solução. Se não houver dormir para não existir nada no cérebro, tem de existir qualquer coisa mais que o substitua. O sorriso da Nônô (a afilhada que não chora quando está perto de uma árvore de Natal), o quente do sol de manhã que me dá os bons dias e me bate na cara, o sorriso de quem passa e diz 'Bom dia menina', os Ferrero Rocher da mãe guardados naquele armário ou até mesmo a cara do padeiro que se assusta quando está a pôr o pão na porta e eu a abro.

Coisas simples da vida que o são sempre, ao pé de uma pessoa que usa uma máscara. 24 não será mais que um número banal, 'quantos queres' um jogo de criança e Fonfon o nome de uma música. Isso mesmo, coisas simples da vida que me fazem crer que às vezes podemos ser um bocadinho crianças, longe de preocupações, com uma mãe que nos passa a mão nos caracóis e diz 'Tudo fica, tudo passa. Depende de quem passa e de quem quer ficar.' Belo trocadilho. São as coisas simples da vida guardadas numa caixa de sapatos, forrada de papéis de jornal, chamada 'Caixinha das memórias'. É a Marta, aquela que muito poucos compreendem e muito poucos conhecem e sabem com o que realmente de bom contar.