sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Palavras de Inverno


"Os cafés são os nossos portos de abrigo em dias de chuva. Eu, que sou completamente solar, entendo mal as pessoas que dizem adorar os dias de chuva. Nos dias de chuva a vida complica-se, porque os transportes chegam atrasados e a abarrotar, e as pessoas tornam-se (mais) impacientes e zangadas, e as suas bocas enchem-se de palavras de Inverno, e há sempre um automobilista que passa rente ao passeio e nos encharca da cabeça aos pés...
Então a mesa de um café é um oásis de paz, que nos ajuda a esperar pelo sol do dia seguinte. Uma espécie de terra de ninguém, ou de toda a gente. Um lugar onde nos sentimos abrigados não só da chuva mas de todos os males do mundo. Naquele dia ainda não tinha parado de chover. Quando entrei no café, a mulher já estava sentada com a criança ao lado, o chapéu-de-chuva a pingar aos seus pés, uma data de sacos de plástico em volta, e o telemóvel colado à orelha. A criança bebia leite com chocolate. Muito devagar.
- Despacha-te!Olha que chegas atrasada!
Mais um número teclado no telemóvel, mas logo desligou, encolheu os ombros e voltou a ligar, esperou alguns segundos mas, pelos vistos, do lado de lá ninguém atendia.
- Claro, nem se lembra...Eu que me fartei de lhe dizer que não se esquecesse... Falava alto, sem destinatário certo, a criança nem a ouvia, bebia o leite e passava o olhar pelas prateleiras dos chocolates. Mas ela continuava a falar, e sempre muito alto, porque é que as pessoas falam tão alto ao telemóvel?, e olhando em volta, como se esperasse apoio ou cumplicidade de alguém.
- Claro, eu é que tenho sempre de andar para a frente, e de arranjar tempo para tudo...
Olhou para o relógio e abanou a cabeça. Voltou a teclar um número, voltou a desligar, voltou a abanar a cabeça, voltou a olhar em volta, voltou a repetir:
- Esqueceu-se, 'tá visto...
- Mãe...quem é que...
Ela nem ouviu a criança. Pousou por momentos o telemóvel sobre a mesa, olhou a chuva que não abrandava.
- Há dias em que tudo corre mal, palavra de honra...Até a chuva tinha de aparecer para complicar tudo...
De repente, como se tivesse encontrado a única saída, pegou de novo no telemóvel, teclou muito rapidamente um número e, daquela vez, teve sorte. Nem «olá», nem «estás onde?», que é agora a maneira de começar qualquer conversa ao telemóvel... Despachadamente disse apenas:
- Desculpa lá, mas tens de ir buscar a miúda às seis horas. Depois explico-t "e onde é, agora não posso, estou cheia de pressa!
Atirou com o telemóvel para dentro de um bolso da grande carteira que pôs ao ombro, pagou a conta, fez prodígios de equilíbrio para ter dedos que chegassem para toda a sacaria, e ainda o chapéu-de-chuva.
-Era o pai? - perguntou, então, a criança.
O resto do leite abandonado no copo. A mulher riu. Como riem as pessoas que não têm vontade nenhuma de rir.
- O teu pai...Sei lá por onde anda o teu pai... Esqueceu-se de ti, mais uma vez...Já devias estar habituada...E tanto que eu lhe pedi...
- Então quem é que me vai buscar à música?
- Vai o Fernando.
A criança olhou para ela, espantada e murmurou:
- O Fernando?
A mulher encolheu os ombros, com ar aborrecido.
- O Fernando, sim, que é que tem?
A criança deixou cair os olhos, pesadamente, no chão.
- Queria o pai...
A mulher abriu o chapéu e resolveu-se a sair para o meio do Inverno.
- Ora...o teu pai ou o Fernando...que diferença é que isso te faz...
A criança seguiu-a sem dizer nada, levando rapidamente as mãos aos olhos, e decerto que guardando para sempre aquelas palavras de Inverno dentro do seu coração."

Alice Vieira
Janela da Alice

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