segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Pobres como nós


"As manhas do estômago

P. é uma mulher bonita. Alta, esguia, de gestos delicados. As fotografias que tem em sua casa mostram um rosto mais cheio, uns olhos mais felizes. "Perdi dez quilos nos últimos oito meses", assume. "Não tinha o que comer." Tem 38 anos, um filho de 12,o 12º ano completo e nunca tinha trabalhado na vida. "O meu marido ganhava bastante dinheiro, era ele que tomava conta de mim. Eu geria a casa, a educação do miúdo, as compras. Vivíamos bem, não éramos ricos mas também não passávamos dificuldades.Mas um dia decidi separar-me do meu companheiro, a nossa relação era muito má. Fiquei com o meu filho e descobri as dívidas do meu marido. Não fiquei com mais nada." Tentou uma imensidade de empregos e só conseguiu arranjar um - como funcionária de limpeza no Hospital de São João. Salário: 430€, mensais. A casa onde vivia serviu para saldar créditos, conseguiu alugar um cubículo de paredes esfareladas e janelas partidas, sem casa de banho, por cem euros. O resto vai para o passe social, água, luz, gás e para a escola do filho. "Habituei-me, logo a seguir à separação a ir comendo pouco."
Se fazia sopa para o rapaz, não lhe tocava. Cozinhava um bife ou uma perna de frango para o miúdo, ao domingo. Para ela, um caldo de cebola ou o que o miúdo havia deixado de sobra no prato. "Depois comecei a comer dia sim, dia não, a ver se me habituava. Desmaiava muitas vezes, quando estava a trabalhar. E um dia perdi finalmente a vergonha. Entrei no refeitório de Rio Tinto e pedi comida." Desde então vai la todos os dias, recolher o almoço. Não come ali, não se quer misturar. E também porque, da refeição que lhe dão, ela consegue inventar três. Um almoço para ela, que o filho tem alimento na escola, e dois jantares à noitinha. Encostada à porta de casa, tentando ignorar o frio, P. pára de falar para desatar num pranto desgraçado. "Ontem comecei a comer o almoço e soube-me tão bem que me apeteceu comê-lo todo. Mas eu não podia, eu não posso. O que hei-de fazer á minha vida?" "

Este é um excerto de um artigo da revista Notícias Magazine, de 18 de Janeiro 2009. Esta é a história do nosso vizinho do lado.Esta é a situação que atinge todos: os da classe média, os que estão na geração em idade activa, os que têm mais aptidões académicas ou maiores expectativas de conforto. Os novos casos que surgem não estão nos escalões mais excluídos da sociedade. Já se contam por 300 mil os portugueses que não se conseguem alimentar. É uma notícia que incomoda, que parece que não existe. Porém é a nossa realidade, e parte do nosso dever ajudar quem pudermos, porque um dia podemos ser nós ou alguém que nos seja próximo. Como diriam na RFM, no fim do momento religioso: "Vale a pena pensar nisto."

2 comentários:

  1. È por ser a nossa realidade tão escondida e tão ofuscada pelo brilho dos "Senhores da Verdade", que nos incomoda tanto.
    Muitas vezes vimos passar senhoras finas, bem vestidas e com bons carros que não têm o que comer em casa...
    Muita gente passa fome ao nosso lado sem que nos apercebamos disso. Por vergonha ou orgulho, não sei bem, mas o certo é que 90% dessa pessoas esconde e não pede ajuda...
    Bom texto... e sim dá muito que pensar!
    Bjs

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  2. Excelente post Marta!

    Impossível ficar indiferente... pelos piores motivos :/

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